quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Em estado crítico: "A Sibila" de Agustina Bessa-Luís

“Quina abriu os olhos, e disse em voz audível algumas palavras que não eram delírio, nem oração, porque o tempo de oração estava no fim, e toda a sua alma se projectava num abismo inefável, se dispersava para entrar na composição magnífica do cosmos.”


Da rudeza nobre da terra brotam os génios difíceis de gente forte. Quina e Estina, duas faces duma mesma alma, ambas duras, uma clarividente, a outra propícia a sofrimentos calados. Cedo conheceram as vias árduas do destino, sempre marcadas pela efemeridade, pela necessidade de não se apegarem àquilo que não podem conservar junto a si. Perderam um irmão, testemunharam as dores de sua mãe, traída por um homem galanteador, o pai das duas, que também cedo partiria. A própria Quina tem a sua vida em risco na juventude. Mas é Estina quem sofre as mais duras perdas, talvez por ser a mais fraca, a que mais deseja acreditar na possibilidade do amor. Primeiro é abandonada pelo homem que ama. Depois vê morrer, um após outro, todos os seus filhos. E é no seu estóico sofrimento que Estina vence Quina. Estina conhece o amor, Quina nunca o conseguirá.

Quina, a sibila, uma mulher simples com capacidades divinatórias, quase totalmente em controlo da sua própria vida, enreda-nos na sua personalidade arisca, na sua atitude prática. Quina não é digna de pena, porque apenas sentimentos elevados lhe podem ser dirigidos, mas adivinhamos nas suas atitudes um desejo de ultrapassar as suas barreiras e vencer a indiferença que desde cedo tomou conta de si. Num misto de curiosidade e desafio, Quina assume a responsabilidade pelo destino de Custódio, um ser caprichoso, movido por uma indomável emoção, de uma crueldade criminosa. Não é amor que Quina procura naquela criança que acolhe na sua casa, é uma aparência de amor, uma sensação de dependência, de gratidão que funcione como paga pelos seus cuidados para com ele e que dê à sua vida uma espécie de propósito respeitável.

A grande ironia de “A Sibila” é que Quina, que defende Custódio, mesmo quando isso implica desafiar todos, acabará por ser o seu carrasco. Os familiares de Quina acusam Custódio de estar apenas interessado na sua herança e chegará o dia em que ele lhe pedirá para que ela lhe deixe tudo. Mas apenas a sensibilidade humana, a compreensão da complexidade de Custódio, permite perceber que o que o move não é o interesse, mas uma necessidade de total correspondência dos seus sentimentos. Custódio quer uma prova do comprometimento de Quina para com ele, uma prova do seu amor de mãe que o não pariu, e sofre com as suas atitudes esquivas e uma sugestão indelével de que Quina, guiada pelo seu espírito racional, se deixará persuadir pelo sangue quando tiver de tomar uma decisão.

No final veremos em Custódio o carácter absoluto do amor, o quão profundo é o desamparo de alguém que se vê privado da única pessoa que lhe deu a mão. Custódio, o quase monstruoso Custódio, revelar-se-á o mais humano, o único que sofrerá uma verdadeira perda, uma perda que o tornará incompleto, incapaz de encontrar um rumo, e que o levará a realizar o último grande sacrifício.

Catalogado como um livro difícil, odiado por muitos, elevado ao estatuto de obra-prima por outros, “A Sibila” é muito mais do que uma saga familiar. Incapazes de compreender a complexidade de certos sentimentos, Quina e a sua estirpe irão prosperar no seu mundo racional, sobre as ruínas daqueles que se deixaram consumir por sentimentos inúteis. Nascer, viver e morrer, esse é o destino de Quina. Esse é o destino da sibila.


Classificação: 18/20

3 comentários:

  1. Excelente artigo, li a Sibila há quase 3 anos, foi estreia absoluta em Agustina, gostei imenso so livro, mas confesso que que passei ainda a gostar mais dele com este artigo por ter alargado a minha interpretação sobre as personagens.
    Aproveito para dizer que já há umas semanas acompanho este blogue, do qual gosto muito e já passei por tudo o que por cá publicou (não é sinónimo de tudo ter lido). Continuarei atento e comentarei quando considerar pertinente por algum motivos

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    1. Obrigado Carlos pelas suas palavras! Este foi o meu 3º livro da Agustina, mas os anteriores tinham sido livro juvenis ("Dentes de Rato" e "Vento, Areia e Amoras Bravas"). E até agora gostei muito de tudo o que li dela.

      Parabéns também pelo seu blogue, que me parece muito interessante. Vou seguir, sem dúvida.

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  2. Não resumiria melhor.

    Na minha opinião, um grande livro.

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