sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Alice Munro, a mestre dos contos


«Não resistimos a revolver deste modo o passado e peneiramos factos indignos de crédito, juntamos nomes dispersos a datas e historietas dúbias, agarramo-nos a fios, insistindo em unirmo-nos aos mortos e, como tal, à vida.» 
Alice Munro em “A Vista de Castle Rock”


Há quem escreva sobre guerras, revoluções e amores épicos, emanando o dialecto do extraordinário. Frases pomposas, palavras grandiosas, personagens quase divinas, maiores que a vida, porque a vida é sempre menor que aqueles que a vivem. Alice Munro não é esse tipo de escritora. É no banal, nos pequenos momentos do quotidiano, na passagem lenta das horas, que Munro vive a sua escrita, elevando o mundano a extraordinário.

As suas personagens têm carne e sangue, e alimentam-se, e bebem água, olham o horizonte a pensar no futuro, deitam-se ao luar a recordar o passado. Vivem frustrações, vivem amores, vivem os dias. Vivem. Não são heroínas românticas, nem homens notáveis. São pessoas que vivem. Como nós.


Eu e Munro


Alice entrou na minha vida por acaso, como normalmente o faz quem nos é mais querido. Foi pela mão de uma das minha melhores amigas, que um dia, há 2 anos, me decidiu surpreender com o “A Vista de Castle Rock”, editado em Portugal pela Relógio d’Água. A escolha do livro foi bastante aleatória: tinha ouvido falar de Munro por alto, encontrou o livro numa promoção da Bertrand, leu a contracapa e achou que era um livro para mim. A escolha não poderia ter sido mais acertada e, se não estivéssemos já suficientemente ligados um ao outro, este livro cimentaria o que já era duro como rocha.

Comecei o livro a medo. Munro era até então uma incógnita para mim e o conto não era um género que me dissesse muito. E este é de facto o livro ideal para leitores com reticiências em relação a contos, porque há nele uma unidade que extravasa a natureza fragmentada que este tipo de livros por norma tem. Alice Munro conta-nos em 11 momentos a história da sua família, desde a partida da Escócia em busca de uma nova vida num novo continente, até à sua própria existência, num registo quase biográfico, mas sem os condicionantes do rigor factual.

Na parte final do livro, em que a Munro ficcionada, tão verdadeira quanto a Munro real, parte à descoberta das campas dos antepassados que invocou na 1ª parte do livro, viajando por caminhos desertos, vagueando por cemitérios abandonados, algo de inexplicável acontece. As folhas do livro desaparecem, a capa desintegra-se e, hipnotizados pelas palavras escritas, sentimos Munro ao nosso lado, partilhamos com ela um estado de consciência, num reconhecimento profundo da solidão e do desamparo. Tudo acabará ali. Também ela será um dia pó debaixo de terra, sob lápides partidas esquecidas no tempo. A única vez que senti algo semelhante foi com “Todo-o-Mundo” de Philip Roth, também no final do livro, quando o personagem principal visita a campa dos seus pais, mortos há já algum tempo. Há um sofrimento sóbrio no luto de mortes distantes, que simboliza com uma perfeição avassaladora a perda, porque apenas o tempo lhe confere a sua verdadeira dimensão.

Desde então que Munro faz parte do meu Olimpo de escritores, e nestes 2 anos comprei “O Amor de uma Boa Mulher” e “Fugas”, também da Relógio d’Água (como o são todos os livros da autora editados em Portugal). Por força da quantidade astronómica de livros que tenho por ler (a vontade de ler, como tradicionalmente, supera em muito o tempo para o fazer), ainda não os li, mas vou passá-los à frente. “Amada Vida”, o seu último livro e considerado por muitos como o melhor, será a minha próxima compra, com a promessa de uma leitura para breve. Aguardem por novidades nos próximos meses…


O que autores conceituados dizem de Munro


«As pessoas falam de Munro como uma “mestre do conto”. Mas mais do que uma mestre no género, Munro recriou-o. As suas histórias aparentemente tradicionais são tudo menos isso. Munro alterna entre múltiplos pontos de vista e planos temporais – coisas suficientemente complexas para nos deixarem de cabelos em pé – não para se exibir, mas para encontrar uma forma de conceder às suas histórias o máximo de densidade. É a escritora mais selvagem que alguma vez li, mas também a mais terna, a mais honesta, a mais perceptiva. Este é um daqueles anos em que ninguém se pode queixar da escolha do Comité do Nobel.»
Jeffrey Eugenides, vencedor do Pulitzer, 
autor de “Middlesex” e de “As Virgens Suicidas

«Ler Munro deixa-me num estado de reflexão calma, no qual penso na minha própria vida: nas decisões que tomei, nas coisas que fiz e não fiz, no tipo de pessoa que sou, na perspectiva da morte. Munro encontra-se num grupo restrito de autores, alguns vivos, a maioria mortos, que me vêm à cabeça quando digo que a ficção é a minha religião.”
Jonathan Franzen, vencedor do National Book Award, 
autor de “Correcções” e “Liberdade

(tradução e adaptação de testemunhos publicados pelo Washington Post)

«Alice Munro está entre os maiores escritores de ficção em inglês dos nossos tempos. A crítica americana e britânica tem-lhe atribuído mãos-cheias de elogios, tem recebido muitos prémios, e tem leitores internacionais devotos. Entre escritores, o seu nome é sussurrado. Ela é o tipo de escritor do qual se diz habitualmente – independentemente do quão conhecida ela se tornar – que tem de ser melhor conhecida.»
Margaret Atwood, vencedora do The Man Booker Prize, 

(excerto de um artigo publicado pelo The Guardian)

 


Livros de Alice Munro publicados em Portugal


Num artigo anterior, apresentei a lista de obras de Munro publicadas em Portugal (todas pela Relógio d’Água). Mas, porque sei que haverá muito apetite pelos livros da autora nos próximos tempos, aqui a têm novamente:

4 comentários:

  1. Eu também considerava o conto um estilo literário menor mas curei-me desse preconceito com Flannery O'Connor e o magnífico "Um Bom Homem é Difícil de Encontrar". Tenho Lydia Davis em lista de espera, já tive Tchékhov nas mãos mas na altura não tive disponibilidade para o ler. Espero ter o privilégio de em breve sentir o pulsar da descrita de Alice Munro, afinal de contas não é todos os anos que o Nobel da Literatura premeia um autor inteligível.

    Aqui está uma boa notícia que queria partilhar contigo e com quem gosta de livros. É necessário novos projectos para revitalizar a indústria do livro e este parece-me um deles. O espaço parece ser simpático.
    https://www.facebook.com/fyodorbooks

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    1. Obrigado pela sugestão! Parece de facto um projecto muito interessante. Vou passar por lá nas próximas semanas.

      Quanto aos contos, não os considerava um género menor, simplesmente nunca tinha lido nada que me tivesse causado um grande impacto. Para mim o ponto de viragem foi a Alice Munro, e a Granta deu sem dúvida o impulso final que necessitava.

      Já me falaram bem da Flannery O'Connor, mas é por enquanto uma das grandes falhas na minha biblioteca. Tenho de resolver esta lacuna. A Lydia Davis é também uma das minhas próximas leituras (mas o registo parece-me muito diferente do de Munro, mais virado para o microconto, o que me deixa algo apreensivo - preciso de algumas páginas para me conseguir relacionar com uma história…), assim como o “Nove Contos” do Salinger, que me foi altamente recomendado.

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  2. Mal posso esperar para ler. beijo e obrigada.

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    1. Não te vais arrepender. Estou quase a terminar o "Fugas" e, mais uma vez, estou maravilhado. Nos próximos dias publico a crítica. Beijinhos

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