sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Em estado crítico: "Memorial do Convento" de José Saramago




Baltasar e Blimunda. Há encontros que estão destinados a acontecer. O mundo move-se e sob cada sol os caminhos são percorridos, minuto após minuto, talvez de acordo com uma vontade superior. Pouco importa se o é ou não, o que importa é que Baltasar e Blimunda se encontraram num auto de fé. Numa cerimónia que festeja o fim e a condenação, celebrou-se naquele dia o início e a aceitação e, sem o saber Baltasar mas sabendo-o Blimunda, naquela mesma noite, quando comerem sopa pela mesma colher, os seus destinos estarão unidos para sempre.

“Memorial do Convento” de José Saramago conta-nos a história do sereno amor do maneta Baltasar e da mística Blimunda, nos atribulados tempos da construção do Convento de Mafra. Mas antes do convento há outra construção que se inicia: a da passarola, projecto antigo do padre Bartolomeu Lourenço, que hereticamente prometeu a quem tudo tem, D. João V, o acesso em vida ao reino dos céus. O lento processo de criação da passarola e as artes nela empregadas são de suma importância para o livro, mais até do que a construção do Convento, que se contenta em ser um pano de fundo quase sempre distante, o que é paradoxal dado o nome do livro. Diga-se com clareza: haveria memorial com ou sem convento, sem passarola não.

E é esse o problema de “Memorial do Convento”, que o afasta do paradigma de excelência que é o “Ensaio Sobre a Cegueira”: a falta de foco. Pegamos no livro a pensar que vamos ler um livro centrado na construção do Convento de Mafra. Depois percebemos que se calhar não, se calhar o livro se centra sobretudo na desmedida vontade de um rei que é um Sol à portuguesa (uma Lua portanto). E entram no livro Baltasar e Blimunda, com a sua comovente dimensão supra-humana, e queremos perder-nos na sua história, mas por vezes somos afastados, sem perceber porquê, e tornamos-nos, algo a contragosto, testemunhas dos debates teológicos internos do padre Bartolomeu (que de tão herméticos nos deixam à nora), do périplo de João Elvas aquando da entrega da Infanta Maria Bárbara ao noivo espanhol, do transporte de uma monumental pedra, que durou 8 dias e mais de 30 páginas. Ganharia o livro em nos aproximar mais daquelas que são 2 das melhores criações de Saramago, Baltasar e Blimunda, sem tantas deambulações e história acessórias.

Dito isto, não haverá palavras suficientes para descrever o brilhantismo do narrador. O narrador em Saramago é tudo, uma espécie de oráculo milenar, que tudo sabe, tudo conhece, que não se limita a narrar: comenta, analisa, revela. E esse é um dos encantos de ler Saramago, a ideia de que ele está ao nosso lado a contar-nos a história, como um sábio nos tempos do antigamente, em torno de uma lareira, ao anoitecer.

“Memorial do Convento” não é um livro fácil, nem será uma boa escolha para quem procura um livro para se distrair ou para quem nunca tenha lido Saramago, mas qualquer aficionado da literatura, particularmente da portuguesa, tem de conhecer a história de Baltasar e Blimunda. Um amor que prospera no silêncio, um silêncio de palavras obliterado por uma partilha incondicional. Baltasar e Blimunda pertencem-se e pertencem-nos.

Classificação: 16/20

(Livro editado em Portugal pela Caminho)

2 comentários:

  1. foi o meu primeiro Saramago e fiquei muito feliz com a minha escolha. acho que me preparou para todos os Saramagos que se seguiram :)

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    1. Mas tu és uma leitora resistente, preparada para enfrentar as dificuldades de um livro :P Para quem está a apalpar terreno é melhor uma coisa não tão densa sob pena de a pessoa se sentir desmotivada a ler outros livros. Mas sim, prepara para tudo! Tendo sido os meus primeiros Saramagos "O Ano da Morte de Ricardo Reis" e o "Ensaio Sobre a Cegueira" também sinto que estou preparado para tudo, para o pior, e para o melhor, respectivamente ;)

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