terça-feira, 13 de outubro de 2015

Os novelos de vozes de Svetlana Aleksievitch


A 8 de Outubro a Academia Sueca voltou a fazer das suas, embora desta feita sem surpresas. O nome de Svetlana Aleksievitch era desde o ano passado dado como um dos favoritos e a Ladbrokes apontava-a como a escolha preferencial, o que não significa que a autora fosse um nome sonante para os leitores de todo o mundo, porque não o era. Aliás, um pequeno inquérito no site do Nobel revela que em 7 mil pessoas 87% não leram nada de Svetlana Aleksievitch, grupo em que obviamente me insiro.

E  assim foi, sem surpresa, com a Academia a teimar na sua recusa em equilibrar o peso do resto do mundo em relação à Europa. Não que isso me cause um particular mal-estar. Tenho uma relação muito compreensiva com a Academia e mesmo quando as suas escolhas me surpreendem, recaindo em escritores que desconheço, encaro esse facto como uma oportunidade de conhecer um novo autor. Dão-te limões, faz limonada.

Dediquei-me então a perceber quem era esta autora bielorrussa, que a Academia considerou ser merecedora da maior distinção do mundo literário, e deparei-me com uma agradável surpresa. Com um percurso ligado ao jornalismo, Svetlana tem uma técnica de escrita muito peculiar: escolhe um tema e recolhe testemunhos, muitos testemunhos relacionados com esse tema, procurando humanizá-lo. Assim aconteceu em relação à queda da URSS e a Chernobyl. Desses testemunhos apenas alguns sobrevivem e chegam ao livro, modelados pela autora em curtos textos, formando no conjunto aquilo a que inspiradamente chamou novelos de vozes.

Mas para quem pensa que o seu papel é fácil Svetlana, em entrevista ao Dalkey Archive Press, alerta: “my role is not just that of an ear eavesdropping in the street, but also that of an observer and thinker. To an outsider it may seem a simple process: people just told me their stories. But it’s not really so simple. It’s important what you ask and how you ask it and what you hear and what you select from the interview. I think you can’t really reflect life’s broad scope without the documentation, without the human evidence. The picture will not be complete”. E na entrevista para o site do Prémio Nobel, instantes após ter sido informada da vitória, reitera: “I never accept the role of a judge, I am not a cool chronicler. My heart is always there.”

Perseguida pelo regime de Alexander Lukashenko, a obra de Svetlana é praticamente desconhecida no seu país natal, o que não impediu que no exterior tenha servido de inspiração à intensa e bela “The Door”, curta-metragem dirigida por Juanita Wilson, distinguida com uma nomeação ao Óscar na categoria“Best Live Action Short Film”.


Não podemos descurar a componente política da vitória de Svetlana. Sim, é uma escritora com uma obra original e com preocupações sociais, mas numa altura em que a Rússia é criticada em várias frentes pelos desrespeitos pelos Direitos Humanos e em que a situação da Ucrânia (país em que Svetlana nasceu, filha de mãe ucraniana) está ainda bastante fresca na nossa memória, este prémio é, para além do reconhecimento do valor literário da obra de Svetlana Aleksievitch, um apoio claro às vozes críticas do regime russo, muitas vezes silenciadas pelo regimes.


Svetlana Aleksievitch em Portugal



A Porto Editora parece ser dotada de clarividência e, pelo segundo ano consecutivo, tinha nas suas fileiras o autor vencedor do Nobel. “O Fim do Homem Soviético” foi uma das novidades desta rentrée literária, certamente inspirada pelo favoritismo de Svetlana em 2014. Mas não é a Porto Editora que irá editar o próximo livro da autora no nosso país, essa honra caberá à Elsinore, que tem preparada para 2016 a edição de “Vozes de Chernobyl” (titulo ainda provisório), a assinalar os 30 anos do desastre nuclear. E para já é com o que podemos contar. Se novos livros de Svetlana Aleksievitch chegarão ou não até nós, só o tempo o irá, mas suspeito que as editoras portuguesas não correrão exultantemente pela obra da autora. Esperemos que me engane.


quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Candidatos portugueses ao Nobel da Literatura (parte 2)

Há 2 anos dediquei-me à hercúlea tarefa de calcorrear a base de dados de nomeados ao Nobel da Literatura até 1950, em busca de candidatos portugueses e publiquei nessa altura um artigo que agora se poderá considerar como uma primeira parte deste. Desde então a Academia disponibilizou mais dados, permitindo que acompanhemos o processo de nomeação até ao longínquo ano de 1964 e, desde 1950 até essa data, surgiram mais nomes de autores portugueses.

Na verdade são 4 os nomes portugueses apresentados ao julgamento da Academia entre 150 e 1964, um deles já anteriormente nomeado. Falo de Júlio Dantas, que em 1951 foi nomeado pelo antigo Primeiro-ministro sueco Hjalmar Hammarskjöld e pela Academia Brasileira. Mas como já falei com maior detalhe sobre este autor no artigo anterior, vou escusar-me a repetições e focar-me nos 3 nomes novos.


Ferreira de Castro


Sofrido escritor português que se viu obrigado a emigrar para o Brasil aos 12 anos e que, após algum sucesso no outro lado do Atlântico, volta a Portugal para uma vida de miséria, a que apenas o seu génio conseguiu pôr fim com a publicação de “A Selva”. Para quem muitas vezes quase nada teve para comer, as nomeações ao Nobel pelo professor dinamarquês Holger Sten e em 1952 pelo historiador João de Barros devem ter-lhe sabido particularmente bem. E melhor lhe teria sabido saber que não cairia no esquecimento, e que 40 anos depois da sua morte a Cavalo de Ferro assumiria o compromisso de trazer de volta ao grande público a sua obra.



Aquilino Ribeiro


De anarquista perigoso, várias vezes detido, a ilustre membro do Panteão Nacional, Aquilino Ribeiro teve uma vida muito atípica que nos legou uma obra que muitos consideram como uma das mais importantes das Letras portuguesas. A prová-lo está a nomeação em 1960 ao Prémio Nobel da Literatura pela Sociedade Portuguesa de Autores, que contou com a subscrição de nomes como Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, Alves Redol, Vitorino Nemésio e Urbano Tavares Rodrigues. Também Aquilino sobreviveu às agruras do tempo, sendo de elogiar a persistência com que a Bertrand tem reeditado a sua obra.


Miguel Torga


Um nome incontornável da literatura portuguesa, Miguel Torga, de seu verdadeiro nome Adolfo Correia da Rocha, foi médico para além de escritor. Mas em vez de o distrair da escrita, a sua profissão fortaleceu a sua consciência do outro, já bastante alimentada pelas suas origens humildes. Torga foi continuamente nomeado ao Nobel entre 1959 e 1962, sempre pela mão de professores universitários, entre os quais Émile Planchard e Hernâni Cidade. Também a sua obra sobreviveu e tem merecido belíssimas edições da D. Quixote.



E em 2015? Vamos ter um Nobel de língua portuguesa?

É possível. As minhas apostas são exactamente as mesmas que no ano passado, porque os pressupostos se mantém. A Academia continua em dívida para com a língua portuguesa e África, o que torna Mia Couto numa possibilidade muito apetecível. Por outro lado, ao falar de escritores em língua portuguesa é difícil não olhar para o Brasil e Ferreira Gullar permanece em evidência, tendo alguma projecção internacional. Mas a Academia pode bem focar-se apenas no factor África e, se assim for, Ngũgĩ wa Thiong'o tem sido apontado como um favorito.

Mas este ano avanço com outro cenário: após entregar o prémio a Modiano, um autor quase desconhecido a nível internacional, talvez a Academia queira apresentar este ano um escritor de grande perfil. E nesse caso surge outra área geográfica onde proliferam grandes autores e escasseia o reconhecimento do Nobel: os EUA. Philip Roth é o nome óbvio, mas tendo parado de escrever parece-me pouco provável que a Academia o eleja, parecendo-me que há outra hipótese aliciante: Joyce Carol Oates. Mas os desígnios da Academia são insondáveis e quase certamente o escolhido será uma enorme surpresa para todos. Veremos, dentro de algumas horas…

terça-feira, 22 de setembro de 2015

A shortlist do The Man Booker Prize 2015


E de 13 restam 6 livros na corrida para vencer o The Man Booker Prize 2015, um dos prémios literários de maior prestígio o mundo, ficando pelo caminho “Lila” de Marilynne Robinson, talvez a autora mais consagrada do grupo.

Dos 6 livros que integram a shortlist, 2 pertencem a autores ingleses (Tom McCarthy e Sunjeev Sahota), outros 2 a autores americanos (Anne Tyler e Hanya Yanagihara), havendo ainda lugar para o jamaicano Marlon James e o nigeriano Chigozie Obioma.

O vencedor será conhecido no dia 13 de Outubro, mas para já deixo-vos com um cheirinho de cada um dos livros.


“A Brief History of Seven Killings” de Marlon James




“Satin Island” de Tom McCarthy




“The Year of the Runaways” de Sunjeev Sahota

“The Fishermen” de Chigozie Obioma

“Part of the novel’s impulse is that I have been looking for a way to capture what I feel is an elemental dilemma of the situation in Nigeria: Why is it that Nigeria can’t progress? We have abundant oil, a strong elite educated class, a sizable youth population of 70 million under 35 years old. Why are we still backwards as a people? The issue I think lies in the foundation itself. The distinct tribes, like Yoruba and Igbo, they are their own states. They used to have no contact and they progressed in their own way. But then a colonizing force came in and said, “Be a nation.” It is tantamount to the prophecy of a madman. Why are we subscribing to this British idea of a nation? Why can’t we decide for ourselves?”



“A Spool of Blue Thread” de Anne Tyler

“The Whitshank family – Red and Abby, now in their early old age, and their two sons, two daughters and numerous grandchildren – cleave to the myth of family precisely because they lack an elaborate foundation story. Their “patriarch”, Junior, is Red’s late father, a carpenter who dreamed and schemed his way to establishing the family’s rather grand and much-admired house, which becomes central to both their story and the novel’s. The shortness of their family tree means “they didn’t have that many stories to choose from. They had to make the most of what they can get”, and such characteristics as they have managed to build up are pretty self-effacing: they pride themselves on not being melodramatic, and their tendency to pretend things are going to turn out fine even leads them to deny their own mortality. “Whitshanks didn’t die, was the family’s general belief. Of course they never said this aloud. It would have seemed presumptuous.” (Not to mention the fact that some of them have died already.)”



“A Little Life” de Hanya Yanagihara

“The novel, which is both a dislocating meditation on the trauma of child sexual abuse, and a moving tribute to the possibilities and limitations of adult male friendship and love, was widely greeted as a book of landmark honesty – “the most ambitious chronicle of the social and emotional lives of gay men to have emerged for many years” – on publication in America in the spring (though some critics found its graphic descriptions of sexual violence both voyeuristic and too much to bear).”

Excerto de um artigo do The Guardian.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A dependência dos livros – edição Agosto de 2015

Agosto já pertence ao passado, mas ainda estão bem presentes na minha memória as boas compras que fiz no mês que passou, graças sobretudo às excelentes promoções que já se tornaram um hábito no Verão.

A Wook é a esse nível sempre tentadora e voltou a não desiludir com “Para Onde Vão os Guarda-Chuvas”, o meu primeiro livro de Afonso Cruz, e “De Mim Já Nem Se Lembra” de Luiz Ruffato com 40% de desconto. E mais uma oportunidade para acrescentar um livro de Alice Munro à minha biblioteca, desta feita “Demasiada Felicidade”, que a Wook me acenava com 30% de desconto.

Também a Antígona fez das suas e entre vários livros em promoção aparecia o clássico ”Ondina” de La Motte-Fouqué a metade do preço. O que pode haver melhor do que isso? Só se a essa encomenda acrescentarmos outra de saldos da The Folio Society, e pouparmos cerca de 13 libras na compra de “Good Behaviour” de Molly Keane.

E só para não deixar dúvidas do sucesso das compras de Agosto, após uma busca desenfreada lá encontrei “Uma Aventura do Marquês de Bradomín” de Teresa Veiga, que se encontrava esgotado, à venda no site da livraria Sidarta a uns meros 7.5€. Pena foi pouco depois ter descoberto que a Tinta-da-China se preparava para reeditá-lo...

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Em estado crítico: “Pastoral Americana” de Philip Roth


O homem comum. Os seus sonhos normais. O desejo de ser feliz, de viver uma vida pacata e envelhecer junto daqueles que mais ama. Philip Roth não escreve sobre homens excepcionais, prefere expor as excepcionais vidas dos homens banais, as suas frustrações, medos e ridículos. Mas em “Pastoral Americana” Roth vai mais longe: constrói o paradigma do sonho americano – um belo atleta louro abastado casado com uma ex-miss – apenas para o destruir. Uma destruição repentina e gratuita, como o costumam ser os acontecimentos que mudam vidas.

Os problemas da família perfeita de Seymour Levov, conhecido como o Sueco, começam com a gaguez da filha, Merry, que surge inexplicavelmente como uma premonição. Levov teme que aquele problema seja um reflexo de algo de errado que se passa com a sua filha, mas pouco consegue fazer para ajudá-la. Os seus sentimentos de culpa aumentam quando, num momento algo irracional, decide ceder aos pedidos da filha para a beijar na boca. Aquele instante é vivido por Levov como um incesto, um quebrar de regras que potencialmente terá aberto as portas à loucura futura.

Merry, frustrada com a gaguez, por se sentir aquém das expectativas dos pais, à medida que vai crescendo começa a desenvolver uma obsessão por questões políticas, mais especificamente pela Guerra do Vietname. Esse sentimento transforma-se rapidamente num repúdio do estilo de vida americano e daí até Merry se envolver com as pessoas erradas é um passo. Levov assiste passivo à perda da sua filha, sem a conseguir controlar, temendo que o pior possa acontecer. E acontece.

Uma bomba explode perto da casa dos Levov matando uma pessoa. De uma idealista radical Merry passa a criminosa procurada. A vida dos Levov é estilhaçada pela bomba, com o Sueco a passar dias e dias a tentar perceber o que correu mal. "Porquê? O que fiz eu para a minha filha se tornar numa assassina?" pergunta Levov, enquanto a sua mulher se afunda numa depressão e a filha se mantém em fuga.

Mas por muito interessante que o enredo do livro seja, há alguns problemas a que Roth não quis ou não conseguiu dar resposta. O período após o rebentamento da bomba caracteriza-se pelas constantes ruminações de Levov, um contínuo “onde foi que eu errei!” que se torna cansativo. E alega-se então “mas esse cansaço faz todo o sentido, porque expressa o cansaço da própria personagem, suscitando no leitor sentimentos semelhantes”, ao que eu respondo com uma velha máxima: a mestria de um escritor revela-se na capacidade de invocar algo sem que o texto tenha de ter essa mesma característica. Suscitar no leitor uma sensação de cansaço é uma coisa, tornar o texto ele próprio cansativo é outra.

Mas o meu grande problema nem sequer é esse. O que de facto me incomoda é a estrutura escolhida por Roth, que dá a sensação de projecto concluído à pressa. Na verdade o livro começa com Zuckerman, um colega de escola que nos revela o mito do Sueco adolescente, o judeu louro que todos conquistava. Zuckerman encontra-se com Levov algumas vezes durante a vida, e já velho ele contacta-o para lhe pedir ajudanuma homenagem que está a preparar para o pai. Depois disso, numa reunião de antigos alunos, Zuckerman encontra Jerry, o irmão do Sueco, que lhe conta que o irmão morreu e que a sua filha é a “bombista de Rimrock”. E a partir desse momento Zuckerman relata-nos uma história idealizada do que terá sido a vida do Sueco. Acontece que, após criar esta parte inicial, com personagens bem delineadas, com a própria vida de Zuckerman a ser-nos apresentada, o livro abandona totalmente este plano e centra-se até à última página na história do Sueco. O pobre leitor, em negação, espera que no final o círculo se complete e que haja uma espécie de reflexão centrada de novo em Zuckerman, o que nunca acontece.

Perguntamos então: para quê? Para quê criar uma história paralela para depois simplesmente a abandonar? Porque não então começar directamente com a narração da história de Levov, eliminando Zuckerman? E para estas perguntas não há resposta, ou pela menos uma satisfatória. É assim porque Roth assim quis que fosse. Mas nem sempre o que o escritor quer é o que é melhor para o livro.

Bem conscientes das desilusões que “Pastoral Americana” nos proporcionou, caminhamos para o final curiosos, sem saber muito bem como irá Roth terminar um livro tão reflexivo, com tantas questões e nenhumas respostas. E o final é estranho, de um estranho que nos faz reler aquelas breves páginas repetidamente à procura de uma mensagem encriptada. Mas aos poucos e poucos apercebemo-nos de que o que Philip Roth nos quer dizer é que a vida é feita de manifestações espontâneas e irracionais de violência e que nunca estaremos prontos para lidar com elas. Mas mais do que isso, há em toda a história de Levov uma mensagem quase fatalista: por muito grandes que os horizontes sejam, a pequenez da vida sobrepor-se-á, porque não há potencial que possa fugir à capacidade destruidora do mundo.

“Pastoral Americana” fala de um tema muito caro aos americanos: a América. O orgulho de ser americano e o ódio pelo que a América representa. A América como terra das oportunidades e como símbolo supremo do mal, uma existência em dois pólos antagónicos que Roth reproduz na perfeição. E por isso se fala deste livro como um dos seus melhores, talvez mesmo como a sua obra-prima. Mas é uma afirmação justa? Infelizmente não.“Pastoral Americana” é um livro bom, mas está longe de ser o melhor que Philip Roth pode fazer. 

Classificação: 16/20

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Contando contos de Edgar Allan Poe: “Revelação Mesmérica”

Poe parece empenhado em converter todos os seus escritos em pequenas dissertações que servem para pouco mais do que expor as suas capacidades retóricas. Desta vez é o hipnotismo o tema em análise, procurando convencer-nos inicialmente da sua capacidade para conduzir o indivíduo a um estado elevado de consciência, no qual se acede a uma espécie de verdade suprema.

Estando o Sr. Vankirk moribundo, o narrador da história é chamado a submete-lo a uma sessão de hipnotismo, prática que parece aliviá-lo. Aproveitando a visão clarificadora que essa condição supostamente proporciona, o Sr. Vankirk discorre sobre a existência de Deus com uma certeza directamente proporcional ao ridículo da sua tese de que Deus é aquilo a que chama matéria impartível, uma matéria una que tudo atravessa.

No final, e apenas para dar um ar da sua graça, Poe ainda nos atiça a curiosidade quanto à capacidade de a alma, quando submetida ao hipnotismo, sobreviver ao corpo. Enfim, não sei o que me espera dos seguintes contos incluídos em "Todos os Contos" de Edgar Allan Poe, mas espero que a qualidade melhore, caso contrário só mesmo sob hipnotismo é que conseguirei levar a sua leitura a bom porto.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Em estado crítico: “Herzog” de Saul Bellow


Não se parte para a leitura de um livro de Saul Bellow com baixas expectativas. Considerado um dos maiores escritores americanos do século XX, conquistou o Nobel da Literatura em 1976, no mesmo ano em que recebeu o Pulitzer por “O Legado de Humboldt”. Mas foi “Herzog” que se tornou sinónimo de Bellow, o que aumenta o simbolismo da sua leitura. A grande obra de um dos maiores escritores, como não ficar ansioso? E talvez o problema seja esse, o esperarmos muito de “Herzog” e depois sentirmos que aquilo que nos dá empalidece perto daquilo que queríamos.

Não sendo um romance epistolar per si, mas sendo a narrativa permeada por missivas que Herzog mentalmente escreve a várias pessoas, fiquei logo no início com algumas reservas. A ideia de um romance recheado de cartas não me parece sedutora, mas resta sempre a esperança de que os preconceitos se revelem infundados e novas possibilidades se apresentem perante os nossos olhos. Não foi esse o caso: as cartas são parte significativa dos meus problemas com “Herzog”.

Moisés Herzog é um homem de meia-idade com o mundo em estilhaços. O recente fim do seu segundo casamento deixou marcas profundas, daquelas que só uma dupla traição consegue criar. Depois de ser convencido pela sua mulher, Madalena, a mudar-se para Chicago e de ajudar um amigo de ambos, Valentim, a encontrar trabalho nessa mesma cidade, Herzog é apanhado desprevenido pela revelação do caso que os dois mantém. Herzog percepciona Valentim como seu inferior em termos intelectuais e, em embora seja charmoso, tem uma deficiência física, o que juntamente com o facto de ser um amigo próximo contribui para exacerbar a humilhação sentida por Herzog. Neste contexto, as cartas mentais funcionam como catarse, uma espécie de autoterapia que ajuda Herzog a ir-se livrando das suas frustrações, apaziguado por um falso sentimento de acção. Mas as cartas tendem a ser divagações filosóficas, considerações desgarradas que interrompem o ritmo da narrativa e subtraem mais do que acrescentam.

E é uma pena que assim seja e que Bellow tenha dificuldades em criar conexões relevantes entre os diferentes momentos da história. É como se estivéssemos perante uma obra de arquitectura com divisões primorosamente construídas, ligadas por corredores em ruínas. De facto o talento de Bellow é inegável nos vários diálogos que vão surgindo ao longo do livro. Equilibrados, com uma carga de oralidade que lhes confere uma autenticidade inatacável e reveladores da complexidade de personagens que recusam a armadilha da bidimensionalidade. A visita ao advogado Sandor e à mulher do seu falecido pai são, por diferentes motivos, excelentes exemplos da perícia de Bellow, mas que funcionam como um contraponto às cartas desinteressantes e às descrições pouco inspiradas.

O frágil jogo de equilíbrio que Herzog se esforça por manter vai-se tornando insustentável e encaminha-se para um trágico desfecho, impedido apenas por um providencial momento de clarividência. Perante um choque emocional Herzog consegue questionar o caminho que decidiu percorrer e depressa se apercebe da dimensão do erro que se preparava para cometer. Num final magistral, que quase compensa as falhas do livro, Herzog volta à sua casa isolada no meio da floresta e reaprende a viver. Há melancolia, há mágoas, há dúvidas, mas há também um vislumbre de esperança. 

“Herzog” não é o livro que prometia ser, mas é uma boa leitura.

Classificação: 16/20

A versão que li é a da Biblioteca Sábado, mas a Quetzal publicou recentemente uma nova edição deste livro.